sábado, 31 de janeiro de 2009

Tudo Azul – uma homenagem definitiva à Velha-Guarda da Portela



por Breno Procópio

Foi em 1995 que Manacéa José de Andrade, um dos mais antigos compositores da Portela, faleceu. Humilde e muito tímido, Manacéa não gostava de se mostrar. Os admiradores que chegavam a Oswaldo Cruz para conhecer a agremiação, demoravam a perceber naquele negro de estatura mediana a grandeza e sabedoria do berço do samba. Discípulo de Paulo da Portela, do qual herdou a educação, a disciplina e elegância de ser compositor, Manacéa morreu sem ter participado de uma das maiores homenagens que se fez à velha-guarda portelense, um CD de 18 faixas, chamado Tudo Azul.

O disco começou a ser concebido em 1998, quando a cantora Marisa Monte iniciou uma pesquisa em busca de sambas antigos, muitos inéditos, de autoria da velha-guarda; o mesmo percurso que Paulinho da Viola fez no começo da década de 70, quando lançou o LP “Portela passado de glória”, revelando os compositores de Oswaldo Cruz para todo o Brasil. No trabalho de Marisa, foram catalogadas mais de 300 músicas a partir de entrevistas, cadernos de anotações esquecidos, catálogos e no acervo do Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro.

Com direção musical e arranjos do violonista Paulão 7 Cordas, Tudo Azul tentou abranger o maior número possível de compositores portelenses, priorizando músicas pouco conhecidas fora do círculo da agremiação. São 12 sambas completos e seis vinhetas, nos quais quase sempre o próprio compositor apresenta sua criação. Exemplo de “Eu te quero”, cantada por Jair do Cavaco; “Vai saudade”, com David do Pandeiro; “Portela desde que nasci”, com o mestre Monarco; “Vem amor”, com Casquinha, e “Tentação”, com o inesquecível solo de Casemiro da Cuíca. Completaram o time da velha-guarda Áurea Maria, Eunice, Argemiro, Cabelinho, Sérgio do Cavaco (Procópio) e Aracy.

Aos compositores portelenses que já estavam sambando lá no andar de cima, o disco presta sua reverência. As pastoras cantam com Cristina Buarque de Holanda a música “Minha vontade” (1955), de Chatim. Cristina, cantora e pesquisadora do samba, cujo trabalho tem revelado a qualidade de compositores esquecidos como Wilson Batista, dá um tom de lirismo à interpretação.

Para homenagear o saudoso Manacéa, Marisa Monte escolheu três sambas que retratam o lirismo, a filosofia de vida e a beleza que ele impunha a cada uma de suas composições. Em “Nascer e florescer” (1955), escutamos num ritmo cadenciado a sabedoria do homem do morro, que crê em Deus e valoriza o amor. Os versos dizem assim: “Não tenho ambição neste mundo, não / Mas sou rico, da graça de Deus / Tenho em minha vida um amor de valor / É o meu tesouro encantador / Mas sei que reclamas em vão / Porque não tens / A compreensão / Que o mundo é bom / Para quem sabe viver / E se conforma / Com o que Deus lhe dar / A nossa vida é nascer e florescer / Para mais tarde morrer”.




Em “Volta meu amor” (1972), música de Manacéa em parceria com sua filha Áurea Maria, quem canta é a própria Marisa os versos de súplica, do sambista que pede o retorno de sua amada: “Vem para os meus braços não me diga mais adeus / Eu só quero ouvir amor dos lábios teus / O teu perfume quero sentir / Entre os meus braços o teu calor / Tão forte quanto o meu amor”.

Um dos destaques, ponto alto mesmo do disco, é a participação do mestre Paulinho da Viola na faixa “A noite que tudo esconde”, de Alvaiade e Chico Santana. Densa e sintética, como todo belo poema, o samba fala da perda do primeiro amor. Paulinho canta com Monarco, de maneira inesquecível.

Após o lançamento de Tudo Azul e do sucesso de público e crítica, Marisa Monte foi reverenciada por Monarco, em nome de todos os integrantes da velha-guarda: “É a nossa deusa querida”. O disco elevou Marisa ao panteão dos jovens músicos, como Paulinho, Crisitina e Zeca, que de tempos em tempos nos reaviva a memória, mostrando que existe lá pelos subúrbios de Madureira e Oswaldo Cruz o melhor da música brasileira.

Tudo Azul incentivou ainda outras velhas-guardas, seja a de Mangueira, Estácio, Império, Vila Izabel, a mostrar seus sambas, a relembrar seu passado.

***

No dia 8 de janeiro de 2009, Casemiro da Cuíca, o mais velho integrante da Velha-Guarda da Portela, que iria fazer 90 anos em março, faleceu. O som de sua cuíca estará para sempre eternizado na faixa de n° 10, chamada “Tentação”, do disco Tudo Azul.

O disco Tudo Azul foi lançado em 2000 pelo selo Phonomotor Records, de Marisa Monte, e distribuído pela EMI/Music.

“Velha-Guarda não é uma questão de idade ou longevidade, mas de identificação com certas matrizes de criação musical carioca.” – frase do professor João Batista Vargens, um apaixonado pela escola de Oswaldo Cruz, que escreveu a biografia “Candeia. Luz da inspiração” (Rio de Janeiro, Funarte, 1997).


ps. Mais fotos e vídeos no endereço http://prosacomcultura.wordpress.com/

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